Por Ramon Andrade

Recife, 27 de setembro de 2014. Meio-dia. Os barcos formam uma fila e navegam vagarosamente às margens do Marco Zero, como se fossem modelos. Os tripulantes, empolgados com a aventura que está por vir, posam para a foto oficial da 26ª Regata Recife/Fernando de Noronha, a maior competição oceânica do Brasil. Meia hora depois, a buzina ecoa fortemente e é dada a largada. O cenário de festa ganha um contraste quando uma nuvem carregada se aproxima da capital pernambucana, empurrada por uma forte e impiedosa ventania. “Caça a vela! Caça a vela!”, grita o comandante do Taru Ande, Antônio Vieira, vendo uma das laterais do seu barco ser coberta pela água do mar. Enquanto isso, centenas de pessoas observam de longe e acenam em tom de despedida, como se aqui dentro estivesse tudo bem. Com uma câmera na mão e uma sensação de inutilidade, eu não consigo parar de me fazer a mesma pergunta: o que estou fazendo nesse veleiro?

O Taru Ande é um barco muito bonito. Com um mastro de 25 metros de altura, se diferencia dos demais devido ao seu design clássico e à sua estrutura toda de madeira. A elegância da embarcação arrancou aplausos do público que acaba de testemunhar a largada da Refeno 2014. Mas aqui, em alto mar, grande parte da sua beleza fica escondida debaixo da água. Por conta da altura de sua vela, o monocasco navega bastante inclinado, prestes a virar. O que estou fazendo nesse veleiro? Capturando imagens e ouvindo termos desconhecidos para uma pessoa que nunca foi ao alto mar. Andando torto, como um bêbado, rumo à Fernando de Noronha. “Ainda dá tempo de desistir”, diz Moacir Marte, o proprietário do barco. “Nem pensar”, respondo.

Apesar da chuva, conseguimos fazer uma largada fantástica. Fizemos ultrapassagens e demos a volta na bóia da praia de Boa Viagem, um novo trajeto que foi exigido pelos organizadores da regata. As manobras causam um verdadeiro rebuliço na parte interna do barco, com portas batendo e gavetas caindo. “Me dá uma mãozinha aqui”, diz Kleber Pereira, enquanto tenta ajustar a bagunça. “Vai ser assim daqui até lá. Eu te avisei que o bagulho é louco”, acrescenta. Na minha mente, dou início a uma contagem regressiva. A previsão do pessoal do Taru Ande é atracar em Noronha em cerca de 48 horas. Olho para trás e vejo meu Recife ficar cada vez mais distante. É hora de tomar o primeiro Dramin.

No fim da tarde, o rádio de contato entre as embarcações é acionado. Um tripulante de um determinado barco desistiu e agora solicita o resgate da Marinha. “Não quer aproveitar a carona deles?”, me pergunta Wellington Ortega. Nem pensar. Levanto para tomar água e comer uma barra de cereal, sempre me apoiando em alguma coisa. “Vai ser assim daqui até lá”, penso comigo mesmo, olhando fixo para o mar. A essa altura, não consigo avistar terra firme e vejo água por todos os lados. É claro que eu já tinha uma noção, mas é impressionante a quantidade de líquido que esse planeta possui. A vida aqui requer certo cuidado. Para evitar enjoo, nada de comida pesada: barras de cereais, sanduíches naturais, frutas e água.

A noite caiu. E, com ela, o mar fica ainda mais misterioso. Não é possível ver muita coisa, e isso tem me deixado bastante angustiado. Estamos em um verdadeiro breu. Essa imensidão me faz refletir com mais calma: será que todo esse esforço vai valer a pena? O som das ondas não me ajuda a pensar numa resposta otimista. Tento me distrair observando um aparelho eletrônico que indica todas as medidas do barco, mas acabo de descobrir que estamos a mais de 500 metros de profundidade. Muita calma nessa hora.

É curioso o modo despreocupado que os tripulantes se mostram na hora de tirar um cochilo. Os lugares são os mais improváveis: do lado do sofá, embaixo da mesa da sala, entre outros. Deitam por ali mesmo e adormecem tão facilmente. Nos quartos, o clima não é dos mais agradáveis. A cama balança como um carrossel, enquanto a parede range como uma trilha sonora dos filmes de terror. O abafado complementa o ambiente enjoativo. O jeito é seguir os conselhos dos colegas e me aconchegar num canto seguro do sofá. O cansaço me ajuda a dormir pela primeira vez em alto mar.

Acordo desnorteado, tendo a certeza de que uma porta acaba de bater. Demoro dois ou três segundos para fazer o “check in” em minha mente. O que estou fazendo nesse veleiro? Ainda sem entender direito, levanto e vou até o lado de fora. O vento está forte, e faz a vela do barco emitir um som semelhante ao dos trovões. Mas a chuva já se foi e a madrugada está estrelada. Enquanto isso, os tripulantes estão em silêncio, observando o mar, que responde com um azul escuro e brilhoso. “É muito bonito, não é?”, pergunta Vanilde Alves, mais conhecido como Alemão. Começo a enxergar os motivos que cativam esses caras. Realmente, apesar da escuridão, o cenário agora está encantador.

Entre um cochilo e outro, chegamos a um belo dia de sol. Agora, a única certeza que tenho é que nenhum barco está por perto. O relógio marca meio-dia, portanto fazem 24 horas que partimos do Recife. Restam outras 24. É justamente nesse momento que somos surpreendidos por um grupo de golfinhos. Todos eles saltam ao mesmo tempo, como uma dança minuciosamente ensaiada. Ficam rodeando o barco por alguns minutos, até sumirem completamente. Ainda durante a tarde, observo de longe uma chuva que vai embora. Chega a ser engraçado, porque aqui o sol está batendo forte. E lá, uma tempestade que nem se mexe, parecendo mais um quadro sem moldura. Apenas uma nuvem roxa com traços finos apontados para baixo, como se estivessem congelados. Mais uma bela imagem que devo guardar para o resto da vida.

No primeiro dia, tudo era novidade. Mas, no segundo, a angústia tem sido meu maior inimigo. Começo a ficar impaciente. O Taru Ande é um dos maiores barcos da Refeno 2014, mas mesmo assim o limite de espaço tem me deixado bastante entediado. Não há muito o que se fazer por aqui, a não ser jogar conversa fora. O semblante calmo dos tripulantes resume a paixão deles pelo mar. “Isso aqui é para quem gosta de verdade”, diz Alemão. No rádio de contato, o comandante de uma embarcação avisa que nos vê de longe, com a ajuda de seu binóculo.

Acabo de testemunhar o último pôr do sol em alto mar. Conseguimos um bom fluxo de navegação, com o barco navegando numa média de 9 nós (a previsão era uma média de 6 ou 7 nós). Por isso, tudo indica que atracaremos em Fernando de Noronha logo ao amanhecer. A possibilidade de vencer na classe “aço” deixa os meus colegas animados. “Só saio daqui quando chegar lá”, brinca o comandante Antônio Vieira, enquanto mexe na leme do barco. Olho o aparelho eletrônico de medidas e vejo que agora estamos a mais de quatro mil metros de profundidade. Tomei mais um Dramin.

Nossa última noite em alto mar parece ser mais longa. Não consigo pegar no sono. Quando finalmente tiro um cochilo, acordo assustado com meus colegas conversando em voz alta, empolgados. Isso porque já é possível ver um clarão no fim do horizonte, o que confirma que estamos mais perto do que nunca. As luzes de Fernando de Noronha me fazem sentir um explorador português, junto com uma vontade imensa de gritar “terra à vista!”. O agito das ondas me lembra que ainda estamos em alto mar, a muitas milhas de distância da ilha. É melhor deixar para comemorar amanhã de manhã.

O sol nasce e o formato de Fernando de Noronha começa a se desenhar no fim do horizonte. Aos poucos, vai ficando cada vez maior. Terra à vista. O relógio marca 5 horas da manhã. A ilha parece estar tão perto que tenho a impressão de que vamos chegar em alguns minutos. “Vai levar mais duas horas, pelo menos”, avisa Antônio. Solto um riso típico de um inexperiente em alto mar. É melhor eu continuar meu trabalho. Pego a câmera digital para fazer algumas imagens da nossa chegada ao arquipélago.

Meu relógio marca 6h. A ilha está tomando um formato mais nítido. O sol está bem em cima da bela paisagem e ilumina Fernando de Noronha como um holofote que indica o caminho para a felicidade. Meus últimos momentos dessa aventura foram reflexivos. Sentado perto da proa do barco, observo os meus colegas falando as estratégias para cruzar a linha de chegada. Avistamos uma bóia. Antônio apruma o barco no rumo certo. Restam poucos minutos para a glória.

Uma buzina parecida com a da largada anuncia a chegada do Taru Ande, que aconteceu às 7h09. Foram 42 horas, 39 minutos e 49 segundos de navegação. Nesse momento, os tripulantes se abraçam num clima cordial. “Fomos demais, Toninho!”, comemora Moacir, chamando o comandante pelo apelido carinhoso. Como a previsão era de 48 horas, nosso tempo de navegação foi realmente motivo de orgulho. Agora, o Taru Ande está devidamente ancorado. Estamos todos observando os golfinhos de Fernando de Noronha. E eu não vejo a hora de pisar em terra firme.

Recife, 2 de outubro de 2013. Acabo de desembarcar no Aeroporto Internacional Gilberto Freyre. Estou de volta à minha cidade – dessa vez de avião. Não paro de pensar na grande experiência que obtive nos últimos dias. Começo a arrumar as coisas no meu quarto. Entre as lembranças da Refeno, trouxe comigo o troféu conquistado pelo Taru Ande na classe “aço”. Um barco de miniatura que hoje enfeita a cabeceira da minha cama e vai me ajudar a relembrar dessa aventura pelo resto da minha vida. Sim, valeu a pena.

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