O Ipad e a prancha de kitsurf
Mesmo com a vida em perigo, Renê Hutlzer, um dos tripulantes da embarcação Nativo, não soltou seu Ipad e sua prancha de kitesurfe. “O barco já estava virado, mesmo assim peguei meu Ipad, que fazia Mapa de Navionics para navegação a Noronha, e guardei no meu casaco”, explicou. “O engraçado é que
o Ipad todo molhado e ele não soltava de jeito nenhum”, brincou Álvaro da Fonte, outro tripulante. Mesmo molhado e sem funcionar, Renê sabia que seu amuleto serviria para algo. “Às 10h da segunda-feira (30 de setembro), vimos um navio muito longe, peguei meu Ipad e comecei a fazer reflexo com a luz do sol para eles nos enxergarem. O navio demorou cerca de duas horas para terminar as manobras de aproximação até chegar a 20 centímetros da balsa – a proa era enorme, de assustar. No final, deu tudo certo, ainda consegui salvei minha prancha de kitsurfe”, relatou.
O peixe e o ‘número 2’
“Os peixes vieram seguindo a gente desde que entramos na balsa. Eles ficavam embaixo do inflável nos beliscando. Ficamos brincando e tentando pegá-los. Até que um dos tripulantes fez o ‘número 2’ e os peixes não pensaram duas vezes e comeram tudo. Depois desse episódio ninguém queria mais pescar e comer os peixes (risos)”, relembrou Jorge Neves.
Urina
Para urinar era bem complicado. A gente pegava o balde que vem no kit e depois lavava”, explicou Jorge Neves.
Comida e água
“A comida a gente viu que não tinha, né? Meu irmão de São Paulo, Roberto, disse que certa vez um prisioneiro político da Irlanda fez greve de fome e só foi morrer após 37 dias. Foi verdade mesmo. No treinamento para capitão amador estudamos que a pessoa pode sobreviver 15 dias sem comer, mas tem que ter água. Nas primeiras 24 horas, não se bebe nada. Depois, 500ml para cada um. A gente tinha um saquinho, na balsa, onde está escrito em várias línguas, que nas primeiras 24 horas não se bebe água. Eu imaginava que cada saquinho desse tinha 500 ml, mas só tinham 125. Pensei: “Se é 500 ml, cada pessoa vai tomar um saquinho desse por dia. Era eu quem distribuía a água. Eu dava para todo mundo e no final eu bebia. Cada um bebia 50 ml de manhã e mais 50 de noite. Teve um dia que choveu e a gente captou água”, detalhou Jorge Neves.
IML
“Eu estava me preparando para ir para Natal, pois havia recebido a informação de que eles já tinham sido resgatados. Mas eu ainda não tinha falado com Álvaro. Eu estava muito angustiada em relação à integridade física dele. Diferentemente dos outros tripulantes, ele não tinha conseguido falar comigo. Eu já estava no caminho com meu cunhado, irmão de Álvaro, indo para lá. Uma amiga me ligou para agilizar o processo de liberação dele, me pedindo o CPF e o RG dele. Como eu tinha saído da Delegacia de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP), estava de plantão lá, pensei: quando se pede CPF e RG da pessoa é para liberar um corpo no IML. Foi exatamente isso que me ocorreu no momento. Pensei: ‘Meu Deus, vou ter que liberar o corpo dele no IML lá’. Fiquei muito angustiada na hora, mas depois passou. Ficamos sabendo que realmente estava tudo bem com todos eles. Ficou só no susto mesmo”, narrou Verônica Azevedo, esposa de Álvaro.
Cadê meus óculos!
Álvaro da Fonte é uma figura bastante conhecida no Cabanga por comercializar todo tipo de óculos. Esperto, não perdeu tempo e enxergou a possibilidade de ampliar suas vendas no paradisíaco Arquipélago de Fernando de Noronha. “Levei 18 óculos para vender em Noronha. Na hora do naufrágio até pensei nos meus óculos e no prejuízo que teria com aquele acontecimento”, brincou Álvaro. “O mais importante foram todos terem sido salvos com saúde”, complementou.
Por onde anda?
O nativo foi visto dois dias após o resgate da tripulação, 2 de outubro, na frente da praia de Touros, no Rio Grande do Norte. Oito dias depois, recebi a informação que a embarcação havia sido vista em Fortaleza. “Estou esperando ele chegar ao Caribe para eu ir busca-lo lá”, avisou o comandante Jorge Neves. “O custo de ir atrás é mais alto do que as coisas que você vai salvar dele, mas existe a curiosidade de saber o que sobrou”, complementou.
Nativo II
O projeto do Nativo II já está pronto e nas mãos de Jorge Neves. “Por enquanto é só a ideia, porque são cerca de três anos para fazer um barco desses. É um trimarã mais moderno, pois o Nativo antigo já tinha mais de 20 anos”, explicou.
A lanterna e o anzol
Com fome e sem comida, Renê era o mais inquieto. Estava ávido por algum alimento até que encontrou um saco dentro da balsa. “Tomamos água e todos estavam com fome. Perdi a paciência e acabei tentando descobrir o que tinha dentro desse saquinho. Tinha certeza que era o anzol. Na hora me veio a ideia de pescar alguma coisa e comer. Mas, com medo do anzol furar a balsa, Jorge achou melhor não abrirmos. Fiquei com o saco na mão e depois de tanta insistência ele deixou abrir”, relembra Renê. Todos ficaram frustrados ao saber que não se tratava do anzol, e sim, de uma lâmpada para lanterna, que para piorar a situação, não funcionava mais.